O CORPO LITERALMENTE FALA: COMUNICAÇÃO EM LIBRAS EM UMA ABORDAGEM HOLÍSTICA TRANSDISCIPLINAR
Marília Duarte da Silva[1]
Denise Almeida Benelli[2]
Resumo
Neste artigo serão abordados diálogos entre a da língua brasileira de sinais – Libras e a abordagem holística transdisciplinar proposta no curso de formação Transdisciplinar em Educação, Saúde e Cultura de Paz da Universidade Internacional da Paz – Unipaz/SC. Delineamos como objetivo ampliar a visibilidade da comunidade surda em espaços holísticos como este e ressaltar o direito de acesso da comunidade surda a uma cultura de paz através da língua de sinais. Ao longo do artigo será apresentada algumas reflexões sobre o corpo físico como meio de comunicação através de Weil e Roland (2015) dialogando com a comunicação em língua de sinais através de Quadros e Karnopp (2004). A comunidade surda será representada pela visão dos autores surdos Strobel (2013) e Stone (2020). A metodologia holística transdisciplinar será conceituada pelos autores Weil, D’Ambrosio e Crema (1993) e a tradução e interpretação de textos sensíveis neste contexto holístico também será exposta baseados nas pesquisas de Gohn (2001). Utilizou-se uma metodologia qualitativa onde a autora do artigo se inspirou nas próprias experiências pessoais, profissionais e culturais vivenciadas na interpretação realizada no par linguístico Libras-Português. O percurso das reflexões envolve a tentativa de unir estudos linguísticos e culturais das línguas de sinais e a metodologia holística transdisciplinar proposta pela Unipaz. A visão holística do corpo, com sua linguagem universal e com sua potência ao expressar uma língua gestual-visual afirmam a capacidade humana de ir além de uma forma de conhecimento pré-estabelecido. A fim de trazer sentido, ampliar inquietações, e criar novas reflexões sobre didáticas inclusivas para abordagens holísticas. Tal abordagem e metodologia corroboram com o intercâmbio cultural entre pessoas surdas sinalizantes da Libras e de pessoas ouvintes dispostas a expandirem seus horizontes. Assim sendo, consideramos relevante as reflexões aqui expostas para a visibilidade das línguas de sinais e expansão de uma cultura de paz para a humanidade.
Palavras-chave: Holística. Transdisciplinar. Língua Brasileira de Sinais. Interpretação Libras-Português. Textos sensíveis.
1 INTRODUÇÃO
O corpo fala, afirmam Weil e Roland (2015) na obra O corpo fala: a linguagem silenciosa da comunicação com sua primeira edição nos anos 80. Nesta mesma década, autores surdos e ouvintes debruçaram-se sobre os estudos linguísticos a fim de dar visibilidade à língua gestual-visual utilizada por pessoas surdas no Brasil. Autores pioneiros como Rehfeldt (1983), Ferreira-Brito (1986), Fernandes (1990), Karnopp (1994) Quadros (1995, 2004), Felipe (2002), Campello (2007) e Vilhalva (2007) entre outros, contribuíram significativamente para que a língua brasileira de sinais – Libras[3] fosse reconhecida e regulamentada no país duas décadas depois.
Ambas áreas do conhecimento seguiram seus passos e se entrelaçaram em minha formação acadêmica no curso de bacharelado intitulado Letras-Libras da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Neste ambiente acadêmico tive o privilégio de conviver com a comunidade surda e sua língua viva e corporal, assim como também conhecer sobre a linguagem corporal exposta na obra de Weil e Roland (2015).
As línguas de sinais, por sua natureza, exige uma exposição de quem a utiliza através do corpo para que a comunicação realmente aconteça. Portanto, a exposição do sujeito é primordial no exercício da profissão de tradutor e intérprete de Libras-Português. Com o intuito de compreender a função deste corpo neste contexto, uma das disciplinas iniciais do curso intitulada Corporalidade e escrita foi a responsável por me apresentar a detalhada obra de Weil e Roland e a perspectiva de uma linguagem universal do corpo.
Nestes estudos o olhar inicial foi para a corporalidade e a leitura não verbal do corpo como ponto de partida para ampliar a percepção e adentrar aos estudos das línguas de sinais. Não somente como uma linguagem não verbal do corpo, mas também a visibilidade do corpo que literalmente fala/sinaliza através de línguas legítimas e complexas assim como qualquer outro sistema linguístico. Línguas vivas, em ação e em constante interação utilizadas pelas comunidades surdas no mundo.
Ao longo de minha formação, estudos específicos da área dos Estudos da Tradução (ET) e Estudos da Tradução e Interpretação de Línguas de Sinais (ETILS)[4], percebi um horizonte de infinitas possibilidades de expansão de corpos, de vidas, de culturas, de línguas, linguagens humanas e interações diversas. Práticas holísticas como o yoga e a meditação sempre estiveram presentes em meu cotidiano como suporte para manter meu equilíbrio emocional e me auxiliar no desempenho das atividades sugeridas pela formação/vida a qual eu estava experienciando.
No ano de 2019 fui convidada para atuar como intérprete de Libras-Português no curso de formação Transdisciplinar em Educação, Saúde e Cultura de Paz da Universidade Internacional da Paz – Unipaz/SC. A Unipaz é uma organização não governamental, sem fins lucrativos, declarada órgão de utilidade pública federal, por Decreto 11.203/88. Foi criada para desenvolver projetos específicos e inter-relacionados à cultura de paz, alicerçada na visão holística, de acordo com a Declaração da veneza da UNESCO (1986) e fundada pelo psicólogo Pierre Weil[5].
2 O CORPO LITERALMENTE FALA: COMUNICAÇÃO EM LÍNGUA DE SINAIS
Diante de toda experiência pessoal, trajetória acadêmica, profissional e o encontro com a metodologia transdisciplinar e holística das formações UNIPAZ-SC neste estudo empreendeu-se uma fusão destes conhecimentos. Tratamos de aproximar as percepções da linguagem silenciosa do corpo, com os estudos da língua não mais silenciada da Libras que foi reconhecida pela Lei 10.436/2002 e regulamentada pelo Decreto 5.626/2005 no Brasil.
A obra de Weil e Roland (2015) prescreve possíveis formas de uma leitura corporal universal das ações humanas afirmando que “o corpo fala sem palavras”. Através da linguagem expressa pelo corpo físico, os autores afirmam que nós seres humanos dizemos muitas coisas uns aos outros através dos movimentos e expressões não verbais. Também nos convidam a perceber que “nosso corpo é antes de tudo um centro de informações para nós mesmos.” (p.5).
Com esta afirmação, percebe-se a aproximação dos autores com o que veremos mais adiante neste artigo sobre a metodologia transdisciplinar e visão holística que fundamenta o trabalho desenvolvido pela universidade internacional com o intuito de disseminar uma cultura de paz. Através deste centro de informações presente em cada ser humano, exposto na obra em questão, encontramos conceitos como o de “símbolos” e a existência deles como sendo uma ferramenta da mente.
De acordo com os autores, desde os primórdios da humanidade um símbolo demonstra “a estrutura psicossomática do homem e da linguagem do nosso corpo.” Apontando que comportamentos e movimentos corporais são capazes de demonstrar quando uma pessoa por exemplo está concentrada e reflexiva ou expressando alegria ou espanto. Uma obra minuciosa que descreve e realça partes do corpo e seu possível significado do que o corpo deseja comunicar sem a utilização das palavras (as palavras aqui expressas também como símbolos através da fala).
A fim de ilustrar, uma pessoa em uma conversa com as sobrancelhas abaixadas demonstra indicativos de concentração, reflexão, seriedade; Assim como sobrancelhas levantadas indicam surpresa, espanto, alegria. A cada descrição nesta obra somos convidados a desenvolver um hábito mais aguçado de “perceber em vez de apenas olhar” para os detalhes da comunicação corporal. Assim sendo, consideramos que esta percepção nos aproxima para a compreensão e aprendizagem não só da linguagem humana mas também de uma língua.
Entretanto, o próprio autor reconhece que “ninguém consegue a percepção fluente de uma língua se apenas a estudar em livros. Mesmo em se tratando da única língua universal [linguagem corporal]; mesmo que, inconscientemente, todos nós nos expressamos por seu intermédio.” (WEIL; ROLAND, 2015, p.67)
A partir deste reconhecimento nos aproximamos aqui da necessidade de afirmar que o corpo literalmente fala, especialmente se tratando do que vem a ser a comunicação através das línguas de sinais. Partindo da percepção minuciosa da linguagem corporal universal apresentada anteriormente, ressaltamos agora os estudos minuciosos e linguísticos propostos por William Stokoe[6].
As línguas de sinais são, portanto, consideradas pela linguística como línguas naturais ou como um sistema linguístico legítimo e não como um problema do surdo ou como uma patologia da linguagem. Stokoe, em 1960, percebeu e comprovou que a língua de sinais atendia a todos os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças. (QUADROS; KARNOPP, 2004, pág.30)
Segundo as autoras as palavras faladas estão para as línguas orais assim como as palavras sinalizadas estão para as línguas de sinais”. O americano Stokoe publicou suas pesquisas sobre a comunicação entre pessoas surdas e com isso provou linguisticamente que os sinais produzidos por eles não eram somente representações de imagens, “mas símbolos abstratos complexos, com uma complexa estrutura interior.” Um marco histórico que impulsionou o avanço das pesquisas linguísticas na área das línguas de sinais no mundo.
Ele foi o primeiro, portanto, a procurar uma estrutura, a analisar os sinais, dissecá-los e a pesquisar suas partes constituintes. Comprovou, inicialmente, que cada sinal apresentava pelo menos três partes independentes (em analogia com fonemas da fala) – a localização, a configuração de mãos e o movimento – e que cada parte possuía um número limitado de combinações. (QUADROS; KARNOPP, 2004, pág.30-31).
Assim sendo, diferentemente das língua orais que recebem informações através da audição e sua reprodução linguística tem como principal canal a fala através das cordas vocais, “as línguas de sinais são denominadas línguas de modalidade gestual-visual (ou espaço-visual), pois a informação linguística é recebida pelos olhos e produzida pelas mãos.” (QUADROS; KARNOPP, 2004, pág. 47-48).
Longe de ser percebida como inferior, Quadros e Karnopp (2004, p. 35) afirmam que às línguas de sinais “apresentam uma riqueza de expressividade diferente das línguas orais, incorporando tais elementos na estrutura dos sinais através de relações espaciais, estabelecidas pelo movimento ou outros recursos linguísticos.”
A comunicação através desta língua ressalta a percepção de mundo principalmente pelo sentido da visão. Como por exemplo, as transformações do ambiente em que uma pessoa está presente, como os latidos de um cachorro ao estourar de uma bomba, são percebidos através de seus olhos e, segundo a autora surda Strobel (2013), os sujeitos surdos utilizam da expressão corpórea-facial para demonstrar esta percepção.
A autora aponta que além de demonstrar fenômenos externos de alteração do ambiente, as expressões facial e corporal funcionam para dar ênfase por exemplo a uma ideia que está sendo transmitida na conversação em Libras. Nas línguas orais uma entonação diferente na fala de uma frase é capaz de demonstrar se é uma mensagem afirmativa, interrogativa ou imperativa. Nas línguas de sinais, estas informações serão representadas através das “expressões facial e corporal que são feitas simultaneamente com certos sinais ou com toda a frase” (STROBEL, 2013, p.51).
Em vista disso, reforçamos aqui que é direito linguístico das pessoas surdas o acesso a informações em espaços públicos e privados através da Libras em todo o território nacional. Entretanto, atualmente é perceptível que as políticas linguísticas e educacionais caminham a passos mais lentos do que a expansão e disseminação da língua no país.
Diante deste contexto daremos continuidade a este artigo conceituando sobre as comunidades surdas e descrevendo uma iniciativa pioneira da unidade de Santa Catarina da UNIPAZ. No ano de 2019 a universidade teve três pessoas surdas matriculadas em uma de suas formações. Como a universidade fez para atender o direito linguístico destas pessoas é o que veremos a seguir.
2.1 COMUNIDADE SURDA E O ACESSO A UMA CULTURA DE PAZ
Para garantir o direito linguístico das pessoas surdas matriculadas no curso, a universidade contratou os serviços de duas intérpretes ouvintes de Libras-Português. A atuação ocorreu durante toda a formação que teve seu início em formato presencial no ano de 2019 na cidade de Balneário Camboriú/SC. Tal iniciativa influenciou diretamente no modus operandi dos seminários presentes na teia curricular do curso assim como em atitudes visíveis das pessoas do grupo.
A presença de três pessoas surdas sinalizantes da Libras e de duas intérpretes (sendo uma delas a autora deste artigo) atuando como ponte para a comunicação entre surdos e ouvintes provocou mudanças comportamentais neste intercâmbio cultural. Sustentando as palavras de Weil e Roland (2015, p.80) “ora, quem está num grupo sempre influencia o comportamento deste e, por sua vez, também é por ele influenciado.”
Isto posto, conceituamos que “a comunidade surda de fato não é só de sujeitos surdos; há também sujeitos ouvintes – membros da família, intérpretes, professores, amigos e outros – que participam e compartilham interesses comuns em uma determinada localização.” (STROBEL, 2013, p.38). Porém, segundo Padden e Humphries (2000, IN: STROBEL, 2013) às pessoas que compartilham de uma cultura surda comportam-se como pessoas surdas e compartilham das crenças de sujeitos surdos entre si, sendo estes pertencentes ao povo surdo. Assim que
Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável, ajustando-o com as suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas[7] e das “almas” das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as ideias, as crenças, os costumes e os hábitos do povo surdo. (Strobel, 2013, p. 29)
O acesso a uma cultura de paz para a comunidade surda no contexto UNIPAZ veio acompanhado da presença de profissionais atuantes na comunidade ouvinte e surda. O grupo de focalizadores, facilitadores e aprendizes, majoritariamente ouvintes, mantiveram-se abertos para aprender e integrar as atividades propostas levando em consideração a percepção visual mantida pelos aprendizes surdos e intérpretes presentes.
Como por exemplo, durante os seminários ministrados pelos facilitadores a intérprete atuante permanecia mais próxima ao facilitador e ao mesmo tempo posicionada frente a frente aos aprendizes surdos. Durante esta interação, os demais aprendizes ouvintes pouco a pouco compreenderam que ao passar em frente ao campo de visão dos surdos e intérpretes, estariam de certa maneira causando uma “ruptura” na comunicação.
Atitudes como esta colaboram para um intercâmbio cultural, tanto do aprendizado holístico proposto pelo curso, quanto para cultura surda e para cultura ouvinte ampliarem seus horizontes. Corroborando com a definição de que “a cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos, em suma, a cultura torna possível a transformação da natureza.” (CUCHE, IN: STROBEL, 2013, p.23.)
A metodologia Unipaz trabalha com os grupos dispostos fisicamente em um círculo ou meia lua. Essa configuração física na metodologia transdisciplinar visa justamente unir as partes presentes. Nesse formato fica mais fácil que as pessoas possam ver umas as outras reconhecendo as diferenças de cada um mas também conscientes de um todo.
Tal configuração física aproxima consideravelmente a comunidade surda deste contexto. Visto que comumente quando um grupo de pessoas surdas se encontram, naturalmente se colocam nesta disposição para que a percepção visual possa ser melhor explorada. Reconhecendo que assim os membros presentes possam estar se olhando e a comunicação aconteça de forma profícua.
Como uma gota d’água a presença de pessoas surdas e ouvintes neste ambiente holístico descrito, a cada seminário, a cada encontro, a cada holopráxis e holologias foi possível encher um copo. Visto que para uma cultura de paz “o que interessa é sermos práticos. Fazer com que as pessoas se entendam melhor, com mais clareza e sucesso. O mundo tem sede disso. Não vamos resolver a situação do mundo, mas podemos trazer o nosso modesto copo de água.” (WEIL; ROLAND, 2015)
Dessa maneira, nos cabe agora explorar um pouco mais o que vem a ser o conceito da metodologia transdisciplinar e sua visão holística. Trataremos aqui como um contexto emergente com a intenção de gerar reflexões e soluções viáveis para que o acesso a uma cultura de paz seja cada vez mais disponível para a comunidade surda.
3 METODOLOGÍA TRANSDISCIPLINAR E HOLÍSTICA: CONTEXTO EMERGENTE
Na metodologia transdisciplinar e visão holística proposta pela universidade em questão, existem termos específicos diferentes dos encontrados em sistemas educacionais convencionais. Como por exemplo, os professores são conhecidos pelo termo facilitadores do aprendizado, seguindo a metáfora de serem como uma lanterna que facilita a iluminação do conhecimento que já existe no mundo para que cada aprendiz (aluno) construa seu autoconhecimento.
Em cada curso também existem os focalizadores, que são os responsáveis por dar o suporte necessário para o facilitador e aprendizes, seja ele um logístico, técnico, emocional, etc. Metaforicamente, os focalizadores são os responsáveis por guardar o foco do grupo, percebendo os momentos em que o grupo desvia sua atenção do proposto pela formação, buscando que o grupo mantenha uma harmonia e atitudes de paz prevaleçam. Geralmente os focalizadores trabalham em dupla e acompanham todo o grupo até a formatura, que neste contexto leva o nome de transformatura.
A grade curricular, que é o conjunto de disciplinas propostas, recebe o nome de teia. Simbolizando, metaforicamente, um entrelaçar das disciplinas que são trabalhadas metodologicamente com o conceito de transdisciplinaridade geral. Uma visão holística dos conteúdos racionais e intelectuais que se expandem para aproximar-se também dos conteúdos e inteligências de cada pessoa presente no grupo, levando em consideração as potencialidades humanas.
A transdisciplinaridade geral é a axiomática comum entre ciência, filosofia, arte e tradição. Como ela inclui as tradições espirituais, leva fatalmente à visão holística através da abordagem holística, desde que praticada. Como axiomática, ela é o resultado de um esforço de conceitualização que leva à compreensão e à definição do novo paradigma holístico. (WEIL; D ́AMBRÓSIO; CREMA, 1993, p.40)
Desta maneira, conceituamos aqui também o que vem a ser a visão holística através das palavras dos autores Weil, D ́Ambrósio e Crema (1993)
Holístico implica uma visão resultante de uma experiência, que por sua vez, é geralmente o resultado de uma combinação de holopráxis ou prática experiencial com o estudo intelectual, ou holologia, de um enfoque analítico e sintético, de uma mobilização das funções ligadas ao cérebro direito e esquerdo e da sua sinergia, de um equilíbrio entre as quatro funções psíquicas, ou seja, a sensação, o sentimento, a razão e a intuição. Chamamos a essa conjunção de “abordagem holística. (p.38)
A palavra “holística” deriva da palavra holismo onde, segundo dicionário da língua portuguesa[8], o termo holos de origem no grego clássico deriva da palavra “holo” que significa inteiro, todo. O prefixo “ismo” é o conjunto de ideias, como uma ciência ou doutrina. Portanto pré entende-se que toda abordagem holística é acompanhada de uma visão global do ser humano em todos seus aspectos físicos, mentais e espirituais.
Portanto, a fusão destes dois conceitos norteiam a forma de atuar da metodologia no curso Transdisciplinar em Educação, Saúde e Cultura de Paz. No contexto apresentado, o grupo teve a oportunidade de experienciar práticas holísticas, nomeadas como holopráxis, e estudos intelectuais de conteúdos sobre ciência, filosofia, arte e tradições, chamados de holologia.
Os seminários foram ministrados por facilitadores que compõem a equipe pedagógica da universidade. Os encontros iniciavam sempre com uma vivência de holopráxis, através de meditações guiadas, práticas corporais como yoga, danças circulares e outras técnicas terapêuticas e artísticas.
Somente após esta etapa que os aprendizes eram conduzidos a holologia, onde em formato de seminários eram apresentados temas como por exemplo: a arte de viver em paz, a arte de viver a natureza, a arte de viver a passagem, entre outros temas relacionados a terapias integrativas e holísticas.
Diante de um todo exposto até aqui, reconhecemos que o grupo de facilitadores, focalizadores, aprendizes e intérpretes construíam em uníssono a didática das práticas e estudos com o intuito de atender a especificidade linguística existente no grupo.
Portanto, os conteúdos utilizados nas holopráxis e holologias eram solicitados com antecipação pelas tradutoras e intérpretes de Libras-Português (TILS) para as focalizadoras. A intenção do pedido servia para que as mesmas pudessem estudar e encontrar soluções práticas e garantir uma comunicação factível nas línguas envolvidas durante toda a formação.
Em alguns seminários foi possível que a organização pedagógica da universidade enviasse o material antecipadamente. Entretanto houve também seminários que não foi possível o atendimento desta demanda comum e importante para o trabalho de tradução e interpretação em qualquer língua.
Cabe aqui visibilizar a fundamental importância e participação ativa que os aprendizes surdos tiveram nesta formação. Visto que, em muitos conteúdos racionais e subjetivos foram os sujeitos surdos, nativos legítimos da Libras, que em contato com as TILS discutiram e apresentaram possíveis sinais e interpretações do conteúdo ou prática que foram realizadas. Explicações visuais de conteúdos subjetivos como por exemplo o conceito de “karma” dentro da tradição hinduísta que demandou do apoio e compreensão da própria comunidade surda em questão.
Situações como esta que se apresentaram reforçam cada vez mais que a comunicação em língua de sinais e “as formas de organizar o pensamento e a linguagem transcendem as formas ouvintes. Elas são de outra ordem, uma ordem com base visual e por isso têm características que podem ser ininteligíveis aos ouvintes.” (Quadros, 2003, pág.86).
Logo, com toda exposição deste contexto emergente constatamos que “a vida é um fluxo constante de energia e a linguagem do corpo é a linguagem da vida; logo temos que conhecer a energia em nós.” Weil e Roland (2015, p.90) Ao reconhecermos esta energia, buscamos traçar ações conscientes e acessíveis para uma cultura de paz através desta metodologia. Possibilitando e dando visibilidade a comunidade surda e sua língua a fim de respeitar suas particularidades e perceber sua significância no todo que é o universo. Revalidando que:
O essencial na transdisciplinaridade reside na postura de reconhecimento de que não há espaço nem tempo culturais privilegiados que permitam julgar e hierarquizar como mais corretos – ou mais certos ou mais verdadeiros – os diversos complexos de explicações e de convivência com a realidade. A transdisciplinaridade repousa sobre uma atitude aberta, de respeito mútuo e mesmo de humildade com relação a mitos, religiões e sistemas de explicações e de conhecimentos, rejeitando qualquer tipo de arrogância ou prepotência. (D’AMBROSIO,1997, p. 79-80).
Com isso, finalizamos esta seção confiantes no crescente campo da transdisciplinaridade e visão holística como contexto emergente para a humanidade. Acrescentando também a importância para área de pesquisa dos estudos linguísticos e culturais surdos como um contexto emergente. À vista disso, seguimos a uma última reflexão da importância e preparação integral dos tradutores e intérpretes de línguas de sinais para atuação em contextos holísticos.
3.1 TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO DE LIBRAS-PORTUGUÊS NO CONTEXTO HOLÍSTICO
Nesta seção seguimos de forma integrada com a relevância de todos os sujeitos envolvidos na comunicação entre surdos e ouvintes visando uma cultura de paz. Destacamos agora sobre o papel dos tradutores e intérpretes que, segundo o autor surdo Christopher Stone (2020), são vozes importantes na história. É por meio deles que diversos contatos linguísticos, sociais, culturais, políticos e/ou econômicos improváveis, ou mesmo impraticáveis, se tornam factíveis e profícuos.
Em relação a contextos impraticáveis, reconhecemos no Brasil o contexto holístico apresentado neste trabalho como uma área de pesquisa em expansão. Atualmente, devido à luta da comunidade surda para disseminação e visibilidade da língua, os surdos brasileiros já ocupam diversos contextos sociais, políticos, educacionais, etc. Entretanto, a barreira linguística ainda é presente em espaços holísticos como nas terapias integrativas e práticas holísticas como aromaterapia, cromoterapia, meditação, yoga, reiki, etc.
Por tal fato, atualmente consideramos a presença do tradutor e intérprete de Libras-Português como uma opção viável e adequada para estes ambientes a fim de que a comunidade surda tenha seu direito linguístico garantido também para estes contextos. Entretanto,
A história da constituição deste profissional se deu a partir de atividades voluntárias que foram sendo valorizadas enquanto atividade laboral na medida em que os surdos foram conquistando o seu exercício de cidadania. A participação de surdos nas discussões sociais representou e representa a chave para a profissionalização dos tradutores e intérpretes de língua de sinais. (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 13).
Corroborando com as autoras, consideramos a profissionalização e valorização destes profissionais para o atendimento em contextos holístico como um ponto indispensável para uma comunicação factível entre surdos e ouvintes. Visto que, é significativo que os sujeitos que atuam nestes contextos como ponte na comunicação dominem as variáveis do par linguístico envolvido. Porém, segundo Lacerda (2010)
Trata-se de aspectos que não serão facilmente construídos apenas pela atuação prática, necessitando de reflexão teórica e possibilidades de experiências que favoreçam que tais aspectos sejam apreendidos por aqueles que pretendem atuar como TILS [tradutores e intérpretes de línguas de sinais]. (p. 148)
Tais reflexões teóricas nos acerca da grande área de pesquisa dos Estudos da Tradução (ET) e dos Estudos da Tradução e Interpretação de línguas de sinais (ETILS). Dado que a tradução e interpretação possuem um propósito comum em “fazer com que uma mensagem expressa em determinado idioma seja transposta para outro a fim de ser compreendida por uma comunidade que não fale o idioma em que essa mensagem foi originalmente concebida. (PAGURA, 2003, p.233).
Posto isso, aos conteúdos apresentados na abordagem vivenciada neste artigo, associamos aqui os conteúdos propostos no curso a uma categoria dos ET chamada de textos sensíveis. Visto que durante o curso os conteúdos relacionados a ciência, filosofia, arte e tradições espirituais nos aproximaram de pontos de vista da realidade que em sua maioria possuíam uma origem em textos considerados sagrados para tradições católicas, protestantes, hinduístas, espiritualistas, xamânicos, indígenas, entre outros.
Segundo Gohn (IN: PAGANO, 2010) as pesquisas sobre a tradução de textos sensíveis, em sua modalidade de textos sagrados, constituem uma área de renovado potencial para aos Estudos da Tradução. O autor apresenta que a sensibilidade de um texto não está nele, mas sim na forma com que este texto é visto. Com isso temos a perspectiva de Simms (1997) que sugere que os textos são considerados sensíveis porque os mesmos são passíveis de suscitar objeções ideológicas.
Um texto poderia ser “sensível” de quatro formas, dependendo do tipo de objeção que ele pode criar junto aos que lêem: através de objeções por motivos ligados 1) ao estado, 2) à religião, 3) ao pudor ou 4) a determinadas pessoas em particular (não estando excluída uma superposição desses motivos em um único caso). (GOHN; IN: PAGANO, 2010)
Sendo a sensibilidade não imanente ao texto, ela portanto está entrelaçada aos sujeitos envolvidos na tradução (ou interpretação) destes conteúdos. Tudo isso coloca os profissionais tradutores e intérpretes destes textos também em condições suscetíveis de criar objeções de sua própria cultura. Segundo Gohn (2010) “a partir de relatos de pesquisadores que trabalham na área, é que o investimento é regiamente retribuído em termos de prazer intelectual e, porque não, em termos de modificações na percepção, por parte do pesquisador, de sua própria cultura e da cultura do outro.” (p.147-148)
De acordo o autor os textos sagrados têm inspirado pesquisas que podem proporcionar uma abertura de horizontes, levando, numa perspectiva otimista, à possibilidade de uma “fusão de horizontes”, no sentido dado a essa expressão por Gadamer (IN: PAGANO, 2010) Fusão esta que consideramos visível na comunicação entre surdos e ouvintes no contexto holístico e transdisciplinar proposto pela Unipaz.
Expomos alguns horizontes traçados e proporcionados através do curso de formação pioneiro descrito neste artigo. Destacamos também o trabalho dos tradutores e intérpretes que estiveram envolvidos no desafio de transmitir os conteúdos de textos sensíveis no par linguístico Libras-Português. Ainda assim, procuramos aqui enaltecer a cultura surda e visibilizar a presença desta comunidade neste contexto holístico.
Ao afirmarmos que os surdos brasileiros são membros de uma cultura surda, não significa que todas as pessoas surdas no mundo compartilhem a mesma cultura simplesmente porque elas não ouvem. Os surdos brasileiros são membros da cultura surda brasileira da mesma forma que os surdos americanos são membros da cultura surda norte-americana. Esses grupos usam línguas de sinais diferentes, compartilham experiências diferentes e possuem diferentes experiências de vida. (KARNOPP, 2006. p.99; IN: STROBEL, 2013).
Com esse entrelaçar cultural, o autor surdo Stone (2020, p.17) afirma que os profissionais tradutores e intérpretes de línguas de sinais vêm sendo constituídos nas e pelas (inter) ações humanas, ao mesmo tempo em que (re) significam essas múltiplas, imprevisíveis e multifacetadas relações.”
Portanto, consideramos que as interações humanas vivenciadas neste contexto privilegiaram reflexões e inquietações para se pensar em factíveis e profícuas traduções e interpretações de Libras-Português. Tal ação contribui significativamente para pesquisas futuras na área dos ETILS levando em consideração o contexto holístico transdisciplinar adotado pela Unipaz em busca de uma disseminação de uma cultura de paz.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através de uma metodologia transdisciplinar e holística proposta pela Universidade Internacional da Paz – Unipaz/SC, tivemos a oportunidade de ofertar o direito linguístico para três pessoas surdas sinalizantes da Libras neste contexto que consideramos emergente.
Tendo em vista os argumentos apresentados, concebemos que horizontes foram traçados e ampliados através da participação ativa das pessoas surdas e ouvintes que coexistiram nas vivências propostas pela formação Transdisciplinar em Educação, Saúde e Cultura de Paz.
Levando-se em conta que esta formação teve início no ano de 2019 e sua finalização em meados de 2022, muitos foram os desafios e contratempos devido a pandemia do COVID-19. Não nos prenderemos aqui a expor tais fatos, mas nos toca valorizar e parabenizar a todos os envolvidos neste processo pelos exemplos de resiliência, cuidado e consciência para com um coletivo em prol da vida e da paz.
Tendo em vista os aspectos observados avaliamos este como relevante também para os estudos sobre a tradução e interpretação de textos sensíveis na grande área dos Estudos da Tradução (ET) e Estudos da Tradução e Interpretação em Língua de Sinais (ETILS). As reflexões apresentadas aqui objetivam somar com pesquisas futuras, tendo em vista a demanda de acesso da comunidade surda a contextos holísticos.
Tais vivências motivaram e inspiraram uma cultura de paz onde os corpos se comunicaram com sua linguagem universal e também com a potência e significância das línguas envolvidas em território brasileiro. Cabe salientar que das três pessoas surdas que iniciaram o curso, somente uma delas seguiu a trajetória da formação até o final.
Com isso, nos compete aqui visibilizar a aprendiz surda Christtine Ferreira Gerber por sua contribuição ativa durante o caminho percorrido até a transformatura e a intérprete Fabiana Albuquerque pelo apoio e trabalho realizado. A participação de vocês foi fundamental para dar visibilidade as pessoas surdas, a sua cultura e comunidade.
A humanidade carece de espaços mais inclusivos e de valores que prezam pelo respeito a uma diversidade real de seres humanos. Uma educação profícua para uma cultura de paz capaz de gerar soluções criativas a fim de tornar o mundo um lugar mais acessível e habitável para a vida contemporânea.
Concluimos que toda especificidade presente nesta formação foi um exemplo e um ponto de esperança para que mais surdos possam ocupar espaços holísticos como este e quiza futuramente possamos ter facilitadores, focalizadores e mais aprendizes surdos na Unipaz.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10436, de 24 de abril de 2002. Dispõe Sobre A Língua Brasileira de
Sinais – Libras e Dá Outras Providências. Brasilia, DF, 2002. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm> Acesso em 15 out. 2022.
BRASIL. Decreto 5.626 de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436,
de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o
art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000.Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Decreto/D5626.htm> Acesso em 15 de out. 2022.
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[1] Tradutora e intérprete de Libras-Português formada no curso de Letras Libras – bacharelado da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora de Yoga e estudante de língua de sinais paraguaia. e-mail: mariliaduartedasilva@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2669-4269
[2] Atualmente é docente Coordenadora do Curso de Fisioterapia da Universidade do Contestado de Concórdia. Focalizadora de Danças Circulares, Reiki Master Internacional Método USUI, Consteladora Sistema Familiar, pela Universidade de Caxias do Sul, 2018. Facilitadora de formação em Constelações Sistêmicas Familiares. Facilitadora da Universidade Internacional da Paz, UNIPAZ. e-mail: denisebenelli@unc.br
[3] Entende-se como Língua Brasileira de Sinais – Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. (BRASIL, 2002).
[4] ETILS: para saber mais em Rodrigues e Beer (2015)
[5] Doutor em Psicologia pela Universidade de Paris, fundador da Associação Internacional de Psicologia Transpessoal, da Associação Brasileira de Psicologia Aplicada, da Sociedade Brasileira de Psicoterapia, Dinâmica de Grupo e Psicodrama, consultor da Unesco em Educação para a Paz, Presidente da Fundação Cidade da Paz. (WEIL; D ́AMBRÓSIO; CREMA, 1993)
[6] Saiba mais sobre Stokoe em: https://www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLibras/eixoFormacaoEspecifica/linguaBrasileiraDeSinaisI/scos/cap18890/1.html
[7] identidades surdas: para saber mais Perlin (1998).
[8] https://www.dicio.com.br/holos/